A ERA DIGITAL, O CORPO HUMANO E O SUJEITO PÓS-HUMANO DE DIREITO
Abstract
OBJETIVOS DO TRABALHO:
O trabalho desenvolvido pelo autor tem por objetivo discutir o estatuto jurídico a ser atribuído ao cyber-corpo, como o Direito contemporâneo reagirá às transformações e promoverá a proteção da dignidade da pessoa humana, diante da emergência do Sujeito Pós-Humano de Direito, o que afeta inclusive a categoria do Sujeito de Direito na estrutura da Teoria do Direito.
METODOLOGIA UTILIZADA:
Identificou-se que o método aplicado na pesquisa realizada pelo autor foi o dedutivo, partindo dos estudos da Escola de Frankfurt sobre a história da modernidade e a razão instrumental, para fundamentar a emergência da era digital. O pensamento frankfurtiano embasa a análise de fundo, enquanto dialoga com uma bibliografia atualizada, reflexiva e crítica sobre o estado da arte na área, utilizando desta opção metodológica para enfrentar o tema e discutir a noção de sujeito pós-moderno e o Direito contemporâneo.
REVISÃO DE LITERATURA:
Na passagem do século XX houve a ascensão da era digital – em que a vida social, as relações de trabalho e grande parte das interações humanas são determinadas por algoritmos e operações digitais – trazendo novos desafios ao Direito. A revolução digital, decorrente da tecnologia avançada, inteligência artificial e aceleração da vida, está associada ainda a um novo estágio de desenvolvimento do capitalismo e, assim, do mundo moderno.
Um conjunto de fatores constitui a nova dinâmica da era digital: a tecnologia da informação; as nano-biotecnologias; a tecnologia genética; a tecnociência; a neurociência; a cloud computing; a robotização; a digitalização; as microtecnologias; e a inteligência artificial (BITTAR, 2019).
No processo social de modernidade líquida ocorre a “dessubstancialização” da matéria e das relações, com a sua transferência para o virtual, o digital e a hipervelocidade, consoante a obra Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman. Assim, surge a civilização da leveza, ou seja, da dimensão imaterial e virtual, segundo Gilles Lipovetsky, em Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Ademais, conforme o filósofo Alain Supiot, ocorre o império do numérico, que instala a governança numérica e afasta o império da lei pelo cálculo. Para esta terceira dimensão da realidade, conceituada por Marcia Tiburi como realidade digital, tem-se o Direito Digital ou Direito Virtual.
A era digital vem revestida por ideologias resultantes da cyberculture, como a apologia ao uso de novas tecnologias, fazendo com que os indivíduos tornem-se meros apêndices de seus gadgets (dispositivos eletrônicos portáteis), enquanto pensam ser tais equipamentos seus novos aliados. Surge a tecno-dependência, pois “a vida moderna impõe um uso irrestrito, imoderado, exaltado e tecnofílico de todo o aparato técnico que suporta a integração das novas tecnologias e a expansão dos novos instrumentos técnicos” (BITTAR, 2019, p. 9).
As tecnologias digitais reconfigurarão inteiramente os relacionamentos humanos nos próximos quinze anos. Existem projeções de que um robô poderá substituir qualquer trabalho humano em 2140, com a promessa futurista de que o homem será libertado de seus fardos. Portanto, estaria em curso uma nova revolução industrial, com a exaltação da máquina e a morte da razão.
Segundo o autor, há os seguintes riscos:
Por isso, pelo caminho da Kritische Theorie, é possível apontar para a crítica das irracionalidades tecnológicas, considerando-se os seguintes riscos, já atuais e presentes: i.) a sobrecarga informacional se torna uma nova forma de desinformação e desorientação, com sensível perda de autonomia intelectual; ii.) o crescimento das formas de hipercontrole dos indivíduos pelo controle de dados derivados da vida digital dos sujeitos; iii.) o crescimento da dominação intelectual e da perda de liberdade de consciência, considerada a invasividade dos meios eletrônicos plugados ao corpo humano; iv.) a emergência da programação pela ‘governança numérica’, no lugar do governo pelo respeito ao povo soberano, como aponta Alain Supiot; v.) a perda da autonomia do sujeito, diante do império do visível, no lugar do reflexivo, como aponta Marcia Tiburi; vi.) o enfraquecimento da subjetividade, que se vê funcionalizada, absorvida e capturada pela técnica, como aponta Christian Dunker; vii.) a emergência da pós-verdade, da verdade-consumo, como aponta Marcia Tiburi; viii.) o enfraquecimento da ética e dos liames que implica; ix.) a perda de rumo e o enfraquecimento dos liames sociais, com forte tendência de entrega e absorção dos poderes sociais pelas novas formas de poder digital. (BITTAR, 2019, p. 12-13).
O progresso da tecnociência (tecnologia avançada e ciência robotizada), sobretudo quanto ao corpo humano, reconfigurará integralmente as relações humanas e sociais, e consequentemente, as fontes de motivação e justificação do Direito. O Direito moderno funda-se na figura de Sujeito de Direito, que nasce à imagem e semelhança do próprio homem (antropocentrismo). No entanto, encontra-se em formação uma nova fronteira: a do Sujeito Pós-Humano de Direito.
O corpo deve ser analisado, para além de sua expressão físico-biológica, como o campo complexo das disputas sociais. Ao se ter o corpo humano como algo obsoleto, surge o pós-humano, o pós-orgânico e o transumano, bem ainda a hiper-modernidade. Há a revolução do corpo humano pela tecnologia a pretexto de melhorá-lo (body modification, hipercodificação de dados, neurochips), visando o hiper-corpo, sem velhice, doença, fraqueza ou limite.
Logo, o corpo representa a vitória do homem moderno sobre a natureza, com o nascimento de um homem-novo a partir do aprimoramento do corpo pela máquina: o homem-máquina ou o cyborgue. Entretanto, representa em verdade a vitória da máquina sobre o homem, em que a máquina de mero apêndice vem a ser o centro da sociedade e a razão de ser da existência, como anunciado pela crítica da Escola de Frankfurt.
O autor afirma que há uma tendência social de desprezar as dimensões do humano face ao pós-humano, considerando as possíveis contribuições da tecnociência e da tecno-modificação do corpo, manifestando-se com isso um novo campo da economia e também do poder, consubstanciado no nanopoder, que “decompõe e recompõe a matéria como em um jogo de Lego”, citando-se Gilles Lipovetsky.
Assim, Bittar esboça um novo estatuto dos Sujeito Pós-Humano de Direito no Direito contemporâneo, a fim de abranger a nova qualidade do humano: o “homem-máquina”, não reduzindo sua preocupação apenas à necessidade de regulamentação da matéria, mas ainda à reconstrução da Teoria do Direito especialmente no tocante ao Sujeito de Direito, haja vista os desafios da revolução digital e tecnocientífica sobre o corpo humano.
Nesse contexto, são identificados alguns riscos concretos a que a vida está exposta: a eugenia e o controle de um mercado de seleção genética; as aplicações de novas tecnologias na guerra, como os avanços da robótica militar; a superação do homem pela máquina; a escravidão dos seres humanos criados pela em laboratório pela manipulação genética, considerados propriedade jurídica de empresas; a “coisificação” da vida humana; a hierarquização entre seres hiper-humanos (corporalmente modificados, com capacidades e habilidades superiores) e seres humanos (inalterados).
Desse modo, com novas preocupações da Teoria do Direito advém regulamentações sobre: a) a proibição legal de clonagem do corpo humano, a fim de que o homem não deixe de ser o sujeito e passe a ser o objeto de Direito; b) os corpos híbridos, gozando de proteção jurídica dos Direitos da Personalidade (arts. 11 a 21 do CC) e também política (cidadania cyborgue), por serem apenas uma nova dimensão física do corpo humano modificado, seja por próteses, cura de doenças ou liberdade estética; c) robôs e inventos mecanizados, que devem ser tratados como objeto de Direito, sendo o proprietário responsável por todos os defeitos e atos que decorrerem do uso de tais máquinas, com base no Direito Civil e Direito do Consumidor.
Portanto, na era do digital, o Direito possui a tarefa de impor limites aos efeitos negativos desse processo, visando a proteção por camadas do núcleo central da dignidade da pessoa humana, notadamente com o incremento da quarta dimensão dos Direitos Humanos (regulação da engenharia genética) e a ascensão de sua quinta dimensão (regulação da tecnologia da informação).
Assim, decorre a legislação sobre “novos direitos”: a) direito de abertura e circulação de dados; b) direito ao apagamento dos dados pessoais; c) defesa da dignidade humana na velhice; d) luta contra a cibercriminalidade; e) invasão de privacidade em face da liberdade de expressão; f) inovação nos métodos de participação política e na forma da democracia representativa.
RESULTADOS OBTIDOS OU ESPERADOS:
Em uma perspectiva teórico-crítica, o autor busca identificar o conjunto de mutações decorrentes das novas tecnologias da era digital, assim como seus riscos e desafios para a Ciência do Direito, especialmente no campo do Direito
Digital; para a Teoria do Direito, sobretudo na categoria dos Sujeitos de Direito; e, ainda, para os Direitos Humanos, com a proteção da dignidade de pessoa humana também através da implementação de novos direitos.
O artigo demonstra que a dignidade da pessoa humana não é atributo exclusivo do corpo-físico ou de seu estatuto em determinada época, gozando também de tal proteção o corpo modificado por intervenção da tecnociência.
Nesse passo, propõe uma ressignificação na Teoria do Direito da categoria do Sujeito de Direito, incluindo-se o Sujeito Pós-humano de Direito. Entretanto, a mesma proteção não deve ser atribuída aos robôs e às invenções mecanizadas, que são objeto do Direito, com mero status de propriedade.
TÓPICOS CONCLUSIVOS
Direito em uma era digital, estabelecendo limites e regras para desenvolvimento tecnocientífico, com a proteção central da dignidade da pessoa humana – ainda que o corpo físico venha a ser modificado mediante tecnologias avançadas, permanecendo a condição humana – garantindo-se novos direitos, sobretudo direitos humanos de quarta e quinta dimensões.
A reinvenção da Ciência do Direito e da Teoria do Direito para acompanhar a era digital trata-se apenas do início de um processo, podendo o estudo do tem ensejar uma nova investigação científica, correlacionando por exemplo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) ou a Lei de Biossegurança Nacional (Lei 11.105/2005).
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BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. A Teoria do Direito, a Era Digital e o Pós-Humano: o novo estatuto do corpo sob um regime tecnológico e a emergência do Sujeito Pós-Humano de Direito. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 10, n. 2, p. 933-961, jun. 2019. ISSN 2179-8966. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/33522. Acesso em: 24 set. 2021.
DOI: http://dx.doi.org/10.21902/RevPercurso.2316-7521.v3i41.5521
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PERCURSO, e-ISSN: 2316-7521
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