O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA O EXERCÍCIO DO PODER DE VIGILÂNCIA ESTATAL

ISADORA LEARDINI

Resumo


Objetivo: O trabalho desenvolvido tem por objetivo analisar como conciliar as inovações tecnológicas trazidas pelos avanços da inteligência artificial, em especial os sistemas de reconhecimento facial, com a preservação dos direitos da privacidade e intimidade, em razão da ausência de uma normativa específica que regule a utilização de tais sistemas, especialmente no âmbito da segurança pública.

 

Metodologia: O método aplicado foi o dedutivo, fundamentado em pesquisa bibliográfica. Partindo de premissas legais, se concluiu que tais tecnologias não devem ser utilizadas indiscriminadamente sem uma regulamentação, sob pena de infringir garantias constitucionais.

 

Resultados: A partir da análise dos dados coletados, se espera demonstrar que os sistemas de reconhecimento facial na segurança pública ainda não devem ser utilizados até que haja uma delimitação e regulamentação.   

 

Contribuições: É inegável que o uso indiscriminado dos sistemas de reconhecimento facial afeta a privacidade e a intimidade, haja vista que, além de armazenar os rostos dos indivíduos em bancos de dados, acaba promovendo um estado de vigilância em que os cidadãos são rastreados em praticamente todos os locais. Enquanto não há uma normativa específica que traga exigências expressas de leis que respeitem as garantias constitucionais para o uso de ferramentas de reconhecimento facial, a aferição de dados biométricos na segurança pública não pode ser indiscriminada. Nos casos de violação de direitos, há que se valer do socorro e intervenção do Poder Judiciário na tentativa de mitigar ou reparar o dano. Conclui-se, portanto, que proteger a privacidade é a forma mais segura de preservar a liberdade. 

 

Palavras-chave: Comportamento Humano; Era Digital; Onipresença Digital; Byung-Chul Han.

 

 

O desenvolvimento social acontece de maneira acelerada com o advento de novas tecnologias, circunstância que resulta em grandes transformações na sociedade. Tais transformações, contudo, precisam ser acompanhadas de reflexão sobre suas consequências.

A inovação tecnológica vem revolucionado a segurança pública, fato que produz reflexos que influem diretamente em direitos fundamentais dos cidadãos.

A tutela jurídica do direito à privacidade e à intimidade merece revisão sobre seus contornos em virtude da adequação à realidade de uma sociedade que se vê regida pelos ditames de um poder de vigilância crescente, principalmente diante da implementação da inteligência artificial e das novas tecnologias de reconhecimento facial.

O reconhecimento facial é uma técnica de identificação biométrica viabilizada pela inteligência artificial, que funciona com um sistema que utiliza algoritmos e softwares para mapear padrões nos rostos das pessoas.

Importante destacar que, em virtude de os dados coletados para compor a assinatura facial se relacionarem com características físicas únicas da pessoa, são classificados como dados biométricos, que estão sob a gama de proteção da Lei Geral de Proteção de Dados. Contudo, embora a lei traga um cenário protecionista do titular dos dados pessoais, quando se trata da utilização de sistemas de reconhecimento facial no âmago da segurança pública, uma das vertentes mais perigosa para as liberdades individuais, a LGPD não se aplica, uma vez que exclui do âmbito de sua proteção as operações de tratamento de dados pessoais voltadas a fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou investigação e repressão de infrações penais.

Portanto, mesmo diante de uma ausência legislativa regulamentadora, o uso de tal tecnologia ganhou grande incentivo em 2019 por meio da Portaria 793, de 24 de outubro de 2019, que fomenta a adoção do reconhecimento facial na segurança pública.

O incentivo resultou em um marco significativo. No dia 05 de julho de 2021 a Polícia Federal assinou um contrato para a aquisição de novas ferramentas de tecnologia e de identificação biométrica. Chamado de Abis (Solução Automatizada de Identificação Biométrica), o projeto permitirá realizar a identificação de pessoas, bem como o armazenamento biométrico de cidadãos. Logo de início, portanto, a ferramenta será abastecida com os dados de 22,2 milhões de pessoas. Depois que alcançar o limite de 50,25 milhões de pessoas cadastradas, poderá ser expandido para que chegue a 200 milhões — quase a totalidade da população brasileira, que atualmente é de cerca de 211 milhões.

Dois dias depois, em 07 de julho de 2021, o LAPIN (Laboratório de Políticas Públicas e Internet) lançou o relatório “Vigilância automatizada: uso de reconhecimento facial pela Administração Pública no Brasil”, cujo principal conclusão da pesquisa é que o emprego de tecnologias de vigilância não tem sido realizado de forma transparente com a população, o que coloca em risco os direitos e liberdades individuais de cidadãos cujos dados são coletados por esses sistemas.

Conforme acertadamente pontuado por Gabriel Barros Bordignon (2020), a ascensão pelo mundo de governantes com pretensões autoritárias ou práticas antidemocráticas; o controle da informação e dos comportamentos por mecanismos midiáticos e/ou corporativos; as câmeras de vigilância e o policiamento ostensivo nas cidades; a popularização de smartphones e outros dispositivos ininterruptamente conectados à internet; todas são questões atuais que apontam a vigilância como fenômeno presente no cotidiano e nas vidas individuais e coletivas do mundo globalizado.

Fato é que, diante da omissão legislativa, ficam indefinidos quais seriam os requisitos técnicos e jurídicos para que estas tecnologias possam ser usadas sem violar direitos individuais e coletivos. Cabe ressaltar que nas demais hipóteses de tratamento de dados biométricos deve haver o consentimento dos titulares para o uso de suas imagens faciais, mas não para efeitos de segurança pública.

Questionamentos como o que seria uma utilização responsável desse tipo de tecnologia; quais princípios são necessários observar (como proporcionalidade, finalidade, consentimento, transparência) para guiar sua implementação e para salvaguardar o exercício das liberdades individuais e liberdades das pessoas, por exemplo, devem ser levantados no espaço público antes do uso indiscriminado em toda a sociedade.

Nesse sentido, há que se destacar que em novembro de 2020, foi apresentado à Presidência da Câmara dos Deputados um Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para Segurança Pública e Investigação Criminal. O objetivo da futura lei é cumprir o que determina o § 1º do art. 4º da Lei Geral de Proteção de Dados: a existência de legislação específica que trate da matéria no âmbito penal.

O anteprojeto se justificada pelo desafio de se garantir um equilíbrio entre a investigação penal, atividade que demanda tratamento de dados de diversas pessoas, na maioria das vezes já marginalizadas, e os direitos fundamentais de privacidade, intimidade e das liberdades individuais.

Não se sabe quanto tempo levará até o Anteprojeto tornar-se lei; contudo, dada a urgência e a relevância da matéria é que a pesquisa se faz pertinente.

É comum que as novas tecnologias venham acompanhadas de polêmicas e implicações éticas. Se de um lado esse recurso pode trazer ganhos para a segurança e a agilidade de serviços, de outro traz importantes implicações em relação às liberdades individuais. O que não pode ocorrer, de maneira alguma, é que a utilização do reconhecimento facial pelas instituições de segurança pública transforme todos os cidadãos em detentos não encarcerados.

O ordenamento jurídico brasileiro ampara o cidadão por meio de garantias legais e constitucionais. Mas, com a evolução da sociedade e do desenvolvimento tecnológico que representam uma retração da esfera privada, é evidente que o sistema normativo, que não goza de evolução parelha, por vezes não fornece os mecanismos legais de que necessita o indivíduo para proteção plena de seus direitos.

Diante de todo o sistema normativo, mesmo sem a aprovação do Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para Segurança Pública e Investigação Criminal, não se deve deixar de observar os direitos e garantias constitucionais de presunção da inocência, a garantia do devido processo penal e mesmo o próprio direito fundamental à proteção de dados pessoais, em especial os dados biométricos.

Para Stefano Rodotá (2008, p. 144), a privacidade constitui pré-condição da cidadania na era informacional e que o fim da privacidade conduziria ao fim da democracia.

Desse modo, sem a devida regulamentação sobre a captação e o uso dos dados pessoais no âmago da segurança pública, não há cuidado com a cidadania, liberdades individuais e, assim, com a democracia.


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Referências


BARROS BORDIGNON, Gabriel. Dispositivos de vigilância como tecnologias de controle no capitalismo de dados: redes sociais e smart cities. Revista de Morfologia Urbana, [S. l.], v. 8, n. 2, p. e00157, 2020. DOI: 10.47235/rmu.v8i2.157. Disponível em: https://revistademorfologiaurbana.org/index.php/rmu/article/view/157. Acesso em: 23 set. 2021.

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RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.




DOI: http://dx.doi.org/10.21902/RevPercurso.2316-7521.v3i41.5541

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