A RECEPTIVIDADE DO PROCESSO ESTRUTURAL PELO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES A PARTIR DO CASO DO POVO INDÍGENA XUCURU E SEUS MEMBROS VS. BRASIL

AMANDA CORRÊA PINTO, CARLA NOURA TEIXEIRA, MARCELO BEZERRA RIBEIRO

Resumo


OBJETIVO DO TRABALHO 

 

Investigar em que medida o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos é receptivo ao processo estrutural, tomando-se como parâmetro o julgamento do caso do povo indígena Xucuru e seus membros vs Brasil.  

 

METODOLOGIA UTILIZADA 

 

Foi utilizado o método lógico-dedutivo, a partir de estudo de caso, com a utilização de pesquisa bibliográfica-documental. 

 

REVISÃO DE LITERATURA 

 

Para Piovesan (2022, p. 219), a consolidação do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos ocorreu em meados do século XX, após as atrocidades vivenciadas nas grandes guerras mundiais, especialmente a segunda, momento a partir do qual a pauta dos direitos humanos entrou efetivamente na agenda internacional. Nesse contexto, ao lado do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, surgiram sistemas regionais de proteção, quais sejam: sistema europeu, sistema africano e sistema interamericano, sendo este último objeto do presente estudo.  

Dentro desse cenário, a doutrina tem reconhecido uma nova categoria de litígio no âmbito do sistema interamericano, intitulada “processo estrutural”, que tem como fim principal a transformação social, por meio da reestruturação do funcionamento das estruturas públicas e privadas, que comprometem o efetivo gozo dos direitos mínimos do ser humano, em razão de grave violação ou fruição ineficiente de direitos humanos e fundamentais (KLUGE; VITORELLI, 2021, p. 57).  

Foi o professor Owen Fiss, da Universidade de Yale, o responsável pelo desenvolvimento doutrinário dos chamados processos estruturais. Segundo Fiss (2022, p. 1.061-1.084), neste tipo de litígio, o Poder Judiciário se depara com uma verdadeira burocracia estatal, fazendo-se necessária a imposição de injunctions, ou seja, reformas estruturais de reconstrução das instâncias institucionais.  

Segundo Arenhart (2017, p. 480), o debate de questões relevantes e complexas, como a implementação de políticas públicas, impõe uma maior amplitude do que a lógica bipolar que norteia os processos no Brasil, como, por exemplo, a possibilidade de participação da sociedade para influenciar no convencimento do juiz, já que há não há só vários interesses em jogo, como a esfera jurídica de vários terceiros pode ser afetada pela decisão judicial.  

Em seus estudos, Kluge e Vitorelli (2021, p. 61) elencaram seis características do processo estrutural, que entendemos estar presentes no processo interamericano, a saber: a) Subsidiariedade; b) Postura proativa e criativa dos juízes; c) Dinâmica multipolar e multifocal; d) Participação de especialistas (peritos); e) Flexibilização da vinculação do comando condenatório ao pedido; f) Finalidade prospectiva e g) Provimentos continuados e diferidos no tempo. Toma-se, a título de exemplo, o julgamento do caso do povo indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil. 

 

RESULTADOS OBTIDOS OU ESPERADOS 

 

A partir das investigações promovidas, foram encontrados elementos do processo estrutural no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, considerando-se o julgamento do caso do povo indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil. A demanda administrativa foi proposta perante a Comissão Interamericana em 16 de outubro de 2002, com o objetivo de investigar ofensa do direito à propriedade coletiva e à integridade pessoal da comunidade. As violações reclamadas trataram da demora de mais de 16 anos (1989 a 2005) na tramitação do processo administrativo de reconhecimento, titulação e demarcação de suas terras e territórios ancestrais (GOMES; CAÑETE; TEIXEIRA, 2022, p. 74).  

Nesse passo, a Comissão julgou inquestionável a responsabilidade estatal do Brasil quanto às violações levantadas, tendo concluído em seu relatório de mérito pela responsabilização internacional. Desse modo, em 16 de outubro de 2015, a Comissão apontou o cumprimento, pelo Estado Brasileiro, de quatro Recomendações, no prazo de dois meses, as quais não foram cumpridas. Como consequência, no dia 16 de março de 2016, a Comissão Interamericana submeteu o caso à Corte, tendo como principal argumento a “necessidade de obtenção de justiça” quanto aos fatos e violações de direitos humanos, não obstante as omissões do Estado Brasileiro em relação ao caso (GOMES; CAÑETE; TEIXEIRA, 2022, p. 75-76).   

A Corte iniciou a deliberação da sentença em 5 de fevereiro de 2018, concluindo que a Constituição Federal de 1988 enuncia o reconhecimento, demarcação e titulação das terras indígenas no Brasil na medida em que concede hierarquia constitucional aos direitos dos povos indígenas sobre suas terras, territórios e recursos, dispondo em seu art. 20 que as áreas indígenas são propriedade da União, que confere a posse permanente aos indígenas, bem como o usufruto exclusivo de seus recursos. Ao final, entendeu como clara a violação ao direito de propriedade coletiva e de proteção judicial (GOMES; CAÑETE; TEIXEIRA, 2022, p. 78). 

Uma análise tangencial do caso é capaz de evidenciar a presença de fortes indícios das características do processo estrutural, elencadas por Kluge e Vitorelli. Em primeiro lugar, a Corte entendeu que a subsidiariedade (primeira característica) foi observada, já que os recursos internos foram esgotados, o que é um dos pressupostos de admissibilidade do processo interamericano. Inclusive, a exceção preliminar de falta de esgotamento de recursos internos levantada pelo Estado Brasileiro foi rejeitada, sob o fundamento de que o Brasil não especificou quais seriam os recursos internos pendentes de esgotamento ou que estavam em curso, nem expôs as razões pelas quais considerava que eram procedentes e efetivos no momento processual oportuno, de forma precisa e específica (CORTE IDH, 2018, p. 14). 

Quanto à postura proativa e criativa dos juízes (segunda característica), observa-se previsão expressa de reparação integral do dano e possibilidade de fixação de diversas modalidades de reparações, entre as quais está inclusa a indenização compensatória coletiva (CORTE IDH, 2018, p. 52), que a nosso ver, possui características estruturais – como a criação de um fundo de desenvolvimento comunitário, constituído sob o montante de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares).  

A dinâmica multipolar e multifocal (terceira característica) também pode ser visualizada no processo interamericano, a partir do estímulo da participação de todos os interessados por meio de apresentação de escritos ou participação em audiências, bem como previsão expressa de instrumentos de participação social, como o amicus curiae (art. 44 do regulamento da Corte), que, inclusive, foi utilizado no caso do povo Xicuru vs. Brasil, no qual cinco entidades diferentes apresentaram manifestações para auxiliar na solução do conflito. Do mesmo modo, a participação de especialistas (quarta característica), além de estar positivada nas normas vigentes, é fomentada por meio da apresentação de pareceres por experts, como peritos, o que ocorreu no caso (CORTE IDH, 2018, p. 6-7).  

A flexibilização da vinculação do comando condenatório ao pedido (quinta característica) não poderia deixar de existir, sob o risco de enfraquecer o resultado almejado, principalmente em situações que demandem reparações estruturais. Apesar de a Corte requerer a manifestação das partes e da Comissão quanto às suas pretensões, essas petições, em conjunto com o conjunto fático e a gravidade e extensão do dano, servem como parâmetros para o Tribunal, sem que isso signifique uma vinculação rígida ao pedido (KLUGE; VITORELLI, 2021, p. 64).  

A finalidade prospectiva (sexta característica) está evidenciada na própria natureza das reparações estruturais. No caso do povo Xucuru vs. Brasil, destacam-se as medidas indenizatórias fixadas pela Corte, tais como: a conclusão do processo de desintrusão do território indígena, com a efetuação dos pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remoção de qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo da comunidade sobre seu território, em prazo não superior a 18 (dezoito) meses (CORTE IDH, 2018, p. 54).  

Por fim, em razão do caráter definitivo e inapelável das sentenças da Corte Interamericana, estas devem ser diligentemente cumpridas pelo Estado de forma integral, o que muitas vezes significa sua execução no transcurso do tempo, evidenciando provimentos continuados e diferidos (sétima característica). Esse atributo também pôde ser visualizado no caso do povo Xucuru, equiparando-se às decisões “em cascata”do processo estrutural (KLUGE; VITORELLI, 2021, p. 65). 

 

TÓPICOS CONCLUSIVOS 

 

A partir das análises realizadas, foi possível concluir que o Sistema Interamericano é receptivo ao processo estrutural, considerando-se as características elencadas por Kluge e Vitorelli e visualizada no caso do povo Xicuru e seus membros vs. Brasil, quais sejam: a) Subsidiariedade; b) Postura proativa e criativa dos juízes; c) Dinâmica multipolar e multifocal; d) Participação de especialistas (peritos); e) Flexibilização da vinculação do comando condenatório ao pedido; f) Finalidade prospectiva e g) Provimentos continuados e diferidos no tempo. 

Diante desse quadro, não há como deixar de responder afirmativamente que o objetivo do trabalho foi atingido, no sentido de que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é receptivo ao processo estrutural, na medida em que a sentença proferida no caso do povo Xicuru vs. Brasil possui diversos elementos de um processo estrutural, já que preencheu a maioria das características criadas pela doutrina especializada na temática.  

Embora a metodologia utilizada tenha sido o estudo de um único caso, entendemos que a existência de um microssistema normativo receptivo a decisões estruturais, nos permite adotar a conclusão de que o Sistema Interamericano é bastante receptivo ao processo coletivo estrutural, da mesma forma que concluíram Kluge e Vitorelli na análise do caso Cuscul Pivaral e outros vs. Guatemala.  


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Referências


CORTE IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf. Acesso em: 21 mai. 2023.

FISS, Owen. Fazendo da Constituição uma verdade viva. In: Sérgio Cruz Arenhart; Marco Félix Jobim; Gustavo Osna. (Org). Processos Estruturais. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 1.061-1.084.

GOMES, Kassiana Rene; CAÑETE, Thales Ravena; TEIXEIRA, Carla Noura. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Proteção dos Direitos Socioambientais: O Caso do Povo Xucuru vs Brasil. Revista Argumentum-Argumentum Journal of Law, v. 23, n. 1, p. 63-87, 2022.

KLUGE, Cesar Henrique; VITORELLI, Edilson. O Processo Estrutural no Âmbito do Sistema Interamericano: Reflexões a Partir do Caso Cuscul Pivaral e outros vs. Guatemala. In: Sérgio Cruz Arenhart; Marco Félix Jobim; Gustavo Osna. (Org). Processos Estruturais. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 337.

KLUGE, Cesar Henrique; VITORELLI, Edilson. O processo estrutural no âmbito do sistema interamericano: Reflexões a partir do caso Cuscul Pivaral e outros vs. Guatemala. Civil Procedure Review, [S. l.], v. 12, n. 2, p. 40–68, 2021.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 219-233.


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